O avanço das inteligências artificiais generativas vem sendo limitado por gargalos energéticos, computacionais e estruturais. Em meio a essa busca por novos paradigmas, o cérebro humano, com sua eficiência energética e plasticidade cognitiva, ressurge como modelo ideal de processamento. A integração direta de neurônios humanos em sistemas computacionais, prática conhecida como bioprocessamento, sinaliza uma ruptura significativa nos limites entre o natural e o artificial [Tony Scherba, 2025].
O uso de culturas neuronais humanas e organoides cerebrais não é apenas uma inovação biotecnológica. Ele representa uma tentativa radical de incorporar à IA os atributos únicos da cognição humana: aprendizado a partir de poucos dados, reconhecimento contextual e adaptação contínua [ResearchGate, 2025]. Empresas como a Cortical Labs e a FinalSpark estão à frente desse movimento, desenvolvendo sistemas bio-híbridos como o CL1 e explorando a “inteligência organoide” como alternativa disruptiva aos chips de silício [Insurtalks, 2025].
Esse novo paradigma transcende a imitação da mente humana. Ele propõe, em essência, a incorporação de seus mecanismos vivos, fundindo algoritmos com tecido neural. Trata-se de um salto não apenas técnico, mas filosófico: a IA deixa de ser apenas uma máquina programada e passa a se constituir, em parte, de matéria viva, aprendente e adaptável.
O potencial de processamento das IAs bio-híbridas
Comparado aos sistemas convencionais baseados em silício, o cérebro humano consome menos energia e apresenta capacidades muito superiores de processamento paralelo e aprendizado [USCViterbi, 2025]. Estima-se que os neurônios humanos sejam até um milhão de vezes mais eficientes no processamento de informações. Essa constatação tem impulsionado o desenvolvimento de arquiteturas baseadas em tecido neural vivo, abrindo caminho para IAs mais econômicas, rápidas e adaptativas [ResearchGate, 2024].
A inteligência organoide, baseada em minicérebros cultivados a partir de células-tronco, já demonstrou capacidades rudimentares de aprendizado e memória de curto prazo [Jump, 2024]. Integrada com algoritmos de aprendizado de máquina, essa abordagem permite uma simbiose entre o biológico e o computacional, em que organoides aprendem enquanto IAs interpretam e otimizam esse aprendizado. O conceito de “cérebro-em-um-chip” torna essa integração ainda mais promissora [NLM, 2025].
A comparação com a computação neuromórfica é inevitável. Ambas as abordagens compartilham o objetivo de mimetizar a eficiência do cérebro, mas a IA bio-híbrida o faz com material biológico real. Isso amplia os ganhos em eficiência e adaptabilidade, mas também aumenta significativamente os riscos éticos e cognitivos, que precisam ser enfrentados com responsabilidade.
Impactos na autonomia cognitiva: o risco da delegação total do pensar
À medida que a IA se torna mais presente na resolução de problemas e na geração de conhecimento, cresce a preocupação com o enfraquecimento da autonomia cognitiva humana. A prática crescente do “descarregamento cognitivo“, em que indivíduos delegam à IA tarefas que antes exigiam raciocínio, está sendo intensificada pelo avanço de sistemas generativos [Forbes, 2025]. Com a IA bio-híbrida, esse risco se torna ainda mais crítico.
A utilização de neurônios humanos em sistemas computacionais pode tornar a IA mais “humana” em sua forma de raciocínio e interação, o que aumenta a confiança do usuário e, paradoxalmente, sua dependência [ARXIV, 2025]. A familiaridade com os sistemas, aliada à opacidade dos processos internos da IA, pode comprometer a metacognição, a capacidade de monitorar e refletir criticamente sobre o próprio pensamento [I2AI, 2025]. Como resultado, corremos o risco de perder nossa autonomia de julgamento e discernimento.
Esse cenário foi antecipado no artigo “O Paradigma do Zero Absoluto: Libertação da IA ou Subjugação da Mente Humana?“. Nele, propõe-se que o uso acrítico da IA pode levar à atrofia do pensamento humano, ao conformismo cognitivo e à subjugação da mente à máquina. A IA bio-híbrida, ao ampliar o realismo e a eficiência desses sistemas, acelera esse risco.
Dilemas éticos e a questão da senciência
A utilização de neurônios humanos levanta dilemas éticos que não podem ser ignorados. A possibilidade de que sistemas bio-híbridos desenvolvam algum grau de senciência, isto é, a capacidade de ter experiências subjetivas, abre um novo campo de debate sobre os direitos e o status moral dessas entidades [ResearchGate, 2024]. Estamos diante de máquinas que, embora não humanas, podem abrigar componentes com potencial de consciência.
Além da senciência, há questões críticas como o consentimento para o uso de material biológico, o risco de mercantilização do tecido neural e a criação de uma nova classe de entidades bio-digitais com implicações legais, sociais e morais inéditas [NLM, 2020]. A “neuroética” ganha centralidade em um mundo onde o cérebro deixa de ser exclusivamente humano e passa a integrar sistemas de IA.
Casos como os organoides de Alysson Muotri, que exibiram padrões neurais similares a cérebros humanos sob anestesia, mostram que essa realidade está mais próxima do que imaginamos. É urgente repensar o conceito de vida, consciência e responsabilidade, sob o risco de reproduzirmos formas tecnológicas de exploração do humano.
Caminhos para a governança e a preservação da agência humana
Para evitar os riscos mencionados, será essencial desenvolver um modelo de governança ética que regule não apenas o uso da IA bio-híbrida, mas que preserve o espaço da cognição humana [ONU, 2025]. Isso implica tanto legislações protetivas quanto uma cultura crítica em torno do uso da tecnologia. Os “neurodireitos“, como o direito à privacidade mental, à identidade e à autodeterminação, devem ser ampliados e incorporados às legislações emergentes [EBC, 2024].
A proposta do Thinking Lab, ao promover o pensamento crítico e a metacognição, revela-se especialmente relevante neste cenário. Acreditar que o avanço tecnológico é inevitável não pode nos impedir de fazer as perguntas certas, nem de preparar as futuras gerações para pensar de forma independente.
A governança da IA bio-híbrida deve se apoiar em princípios como transparência, responsabilidade, acesso igualitário e supervisão humana contínua. A interdisciplinaridade, envolvendo neurocientistas, engenheiros, juristas, filósofos e a sociedade civil, será essencial para orientar essa nova era de convergência entre biologia e tecnologia.