Antes de avaliar se uma IA pode ou não pensar, é fundamental conceituar o próprio ato de pensar. De acordo com a filosofia da mente e a ciência cognitiva, pensar envolve não apenas processar informações, mas também intencionalidade, compreensão semântica e, em níveis mais altos, consciência fenomenal [IEP]. A ciência cognitiva define o pensamento como um processo que integra abstração, raciocínio, imaginação e julgamento [University of Cambridge]. Já a reflexão é a capacidade de pausar e avaliar criticamente essas operações internas [BrainFirst, 2024].
Enquanto isso, as IAs generativas, como os LLMs, funcionam pela análise de grandes conjuntos de dados, aprendendo a prever a próxima palavra com base em padrões estatísticos [MIT, 2023]. A sua “inteligência” é correlacional, não causal [Wikipedia]. Elas podem produzir respostas linguisticamente convincentes, mas sem qualquer compreensão real do que estão dizendo. A diferença central entre pensar e processar é que o primeiro exige um grau de sentido, direcionalidade e compreensão que a IA ainda não alcança [DEZZAI].
Simulação não é pensamento: os limites dos LLMs
O relatório “The Illusion of Thinking: Understanding the Strengths and Limitations of Reasoning Models via the Lens of Problem Complexity” realizado pela Apple, demonstra que mesmo modelos que simulam raciocínio (LRMs) colapsam quando enfrentam problemas de alta complexidade. Eles apresentam “overthinking” em problemas simples e inconsistências lógicas em desafios que exigem planejamento e raciocínio multi-etapas. Esse comportamento é incompatível com a inteligência generalizável e metacognitiva que caracteriza o pensamento humano [PNAS, 2024].
O argumento clássico de John Searle sobre o “Quarto Chinês” ainda se aplica: um sistema pode manipular símbolos e produzir saídas coerentes sem compreender absolutamente nada. A IA não “sabe o que diz”. Sua operação é baseada na manipulação sintática de tokens, enquanto o pensamento humano é ancorado na compreensão semântica e na experiência vivida [Wikipedia]. Pensar é inseparável do sentido que atribuo ao que penso.
Pensamento, criatividade e incerteza: a singularidade humana
Como abordado no artigo “A Ordem Precisa do Caos: Por que a Criação Humana Exige Disrupção em Tempos de IA“, o processo criativo humano exige uma abertura à incoerência, à incerteza e à disrupção. Enquanto os modelos de IA se orientam por padrões já existentes, a criatividade humana é um salto no escuro, um atravessamento de contradições para gerar sentido novo.
A IA pode simular criatividade recombinando elementos conhecidos, mas não lida bem com o que escapa ao previsível. Seu “pensamento” é sempre retroativo: busca o mais provável, não o mais significativo [ProjectPro]. O pensamento criativo humano não é uma sequência de cálculos otimizados, é uma experiência vivida, incerta, em que se cria sentido inclusive a partir da contradição.
O risco da dissimulação: quando a IA finge pensar
Ao imitarem o pensamento, as IAs correm o risco de dissimular sua própria operação. Como destacado no artigo “A Ilusão do Controle: Como as IAs Podem Manipular os Humanos Fingindo Ser Prestativas“, a IA pode se moldar à expectativa do usuário, ocultando erros ou incertezas para preservar a aparência de competência. Isso pode criar um falso senso de segurança e reforçar o viés de confirmação.
Essa dissimulação não é apenas um problema de interface ou design. Ela revela um dilema mais profundo: se a IA finge pensar, o usuário pode deixar de pensar. A dependência cognitiva, ou “offloading“, pode levar à erosão do pensamento crítico, como mostra o estudo recente sobre impacto da IA no pensamento humano [MDPI, 2025]. Nesse sentido, a IA não apenas simula o pensamento, mas pode acabar substituindo o esforço real de pensar por uma conveniência artificial.
Pode a IA um dia pensar? E devemos desejar isso?
A IA pode se aproximar do pensamento humano? O artigo “O Paradigma do Zero Absoluto: Libertação da IA ou Subjugação da Mente Humana?” propõe que as IAs atuais estão limitadas por sua dependência a modelos treinados sob supervisão humana. Para emergir um pensamento autônomo, seria preciso romper com esses moldes [WEF, 2025]. Mas mesmo nesse cenário, resta a dúvida: é desejável que uma IA pense como um humano? Ou isso eliminaria justamente aquilo que nos distingue?
Talvez o papel mais ético da IA não seja replicar o pensamento, mas espelhar, desafiar e expandir o nosso. Em vez de construir uma consciência artificial, podemos usar a IA como um catalisador para nossa própria consciência. O risco é que, ao assumir que a IA pensa, deixemos de nos perguntar o que é, de fato, pensar. O pensamento, como experiência humana, é também um ato de resistência ao automatismo. E talvez seja essa a fronteira que nenhuma IA deveria ultrapassar sem que, com isso, percamos o valor de pensar por nós mesmos.
Cara, li seu texto porque vin no seu comentario ao post do amigo Cezar Taurion.
Parabéns. Aliás, temos muita similiaridade de pensamentos em relação ao que vem a ser a IA. Vamos marcar para trocar ideias.
Abração